Escrito pelo prof. Dr. Gilciano Costa
A Travessa Espírito Santo, localizada no atual Centro Histórico de Itaboraí, representa um “lugar de memória” da cidade, na medida em que é possível através da observação do espaço físico (material) desenvolver uma memória coletiva (imaterial) do lugar [1].
Pela fotografia, tirada possivelmente na década de 1910, observa-se os fundos da Igreja Matriz de São João Batista e diversas construções ainda herdeiras da arquitetura do século XIX [2].
Esse lugar, conhecido no século XIX como “Travessa da Matriz”, ou “Viela da Matriz”, foi também um espaço representativo do cotidiano da escravidão em Itaboraí. Isso porque foi nesse local que, segundo o jornal o Popular de 1855, existiu, na hospedaria do Sr. Ludgero da Silva Moura, uma casa de aluguel de escravizados [3].
A caraterística comercial da Travessa, embora também tenha sido um local de residências, se destacava já no século XIX e atraía, além dos moradores, os viajantes que por aqui transitaram. Entre eles, destaca-se o Príncipe Adalberto da Prússia que passou por Itaboraí em 1842 [4]. Essa cultura comercial no local é representada na fotografia, com maior destaque, pelo sobrado com os dizeres “Café e Bar Central”.
Cabe ressaltar que foi na entrada dessa Travessa, que, em 1841, nasceu Salvador de Meneses Drummond Furtado de Mendonça, personagem consagrado na História do Brasil. Salvador de Mendonça morou no local, possivelmente, até os 12 anos. Além de um dos idealizadores do Movimento Republicano Brasileiro, ele atuou como “jornalista, advogado, diplomata, romancista, ensaísta, poeta, teatrólogo e tradutor” [5].
É relevante destacar que a Travessa Espírito Santo é historicamente um espaço (sobretudo) de dinamismo cultural em Itaboraí. Sua denominação está associada a uma percepção coletiva de valorização cultural de alguns moradores do século XIX, na medida em que estes deram esse nome à Travessa para contemplar uma das principais festividades existentes (nesse período) na cidade. Trata-se da Festa do Divino Espírito Santo.
Essa festa (considerada como uma prática católica) era realizada acompanhada de música, dança, máscaras e fogos de artifício, onde pessoas das mais variadas condições participavam e onde o sagrado e o profano coexistiam [6].
A divulgação da festa era feita com expressividade pelos jornais locais e perpassou diferentes períodos. Entre os que mais noticiaram, destacam-se O Severo (1832), A Civilização (1850-1853), O Popular (1855-1862), O Social (1886-1889) e O Itaborahyense (1895-1930). Todos esses periódicos destacaram o brilhantismo da festa e diversos deles mencionaram a Travessa como espaço de aglutinação dos participantes, seja como ponto inicial ou final da festa [7].
Desse modo, a Travessa Espírito Santo representa um dos poucos espaços em Itaboraí em que uma manifestação cultural foi contemplada pelo ato de se prestigiar um local por uma nomenclatura, prática (em caráter de homenagem) que de longa data foi realizada a pessoas com notoriedade.
No contexto do século XX, a Travessa foi a primeira rua de Itaboraí a receber calçamento com paralelepípedos. A obra foi realizada em 1944 e ocorreu na gestão do Prefeito João Augusto de Andrade. Foi apenas em outubro de 1986, na administração do Prefeito João Batista Cáffaro, que essa rua foi transformada em área de lazer, na medida em que a Travessa foi fechada para o tráfego de veículos [8].
A partir da década de 1990 e até o início dos anos 2000, o Beco do Rock, como a Travessa passou a ser conhecida, se tornou um dos expoentes da cultura musical na cidade. Entre artistas consagrados da música brasileira que tocaram na travessa e em frente dela, destacam-se Lulu Santos, Dinho Ouro Preto, Benegão, Marcelo Bonfá, Dado Villa Lobos, Toni Platão e o grupo Raimundos. Entre os artistas locais, destacaram-se a banda Alma Reggae – do saudoso Bira – os Tubarões Voadores, Nova Ordem, Fabinho do Blues Trio, Barbie Suburbana, Intrusos, Cequatro e bandas de rock mais pesado como “Lombrigas Cabeludas”.
Embora diversas outras bandas e cantores de Rock, Reggae e MPB tenham tocado no local, esse movimento musical foi ocorrendo com menos frequência no final dos anos 2000. Com o surgimento de novos estabelecimentos comerciais na Travessa, outros ritmos musicais, como forró, pagode e samba, passaram a ser mais tocados, o que gerou uma diversidade musical maior no local. Com isso, o termo Beco do Rock caiu em desuso, passando a ser utilizado mais o termo Beco ou Travessa Espírito Santo.
Portanto, nota-se que diante das diferentes práticas culturais realizadas em diversos períodos no local, essa Travessa possui um valioso legado histórico cultural do município e sua valorização deve ser pensada também no sentido de se estimular a preservação desse espaço.
___________________
Fontes e Bibliografia:
[1] NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p. 12-13.
[2] Agradeço à artista plástica e Professora Cristiane Rosa Pereira Jardim e ao jornalista William Mendonça por me cederem, em momentos diferentes, esta fotografia. A análise da data da fotografia foi realizada através da comparação com os registros iconográficos de Augusto Malta e do Álbum do Centenário da Independência do Brasil, tendo como referência comparativa as edificações que existiam na fotografia analisada e que não existiam mais nas obras citadas nesta nota.
[3] Jornal O Popular de 1855.
Biografia
Gilciano Menezes Costa é formado em História pela UFF, com Mestrado e Doutorado pelo PPGH-UFF. Professor de História, Filosofia e Sociologia na rede estadual de ensino em Itaboraí. Idealizador do projeto História de Itaboraí e Região.
